sábado, 20 de fevereiro de 2016

10 perguntas sobre o (meu) poliamor



Pedi num grupo feminista que me fizessem algumas questões sobre poliamor. Recebi mais perguntas do que imaginei, o que me deixou bastante feliz. Respondo aqui a dez dessas perguntas e nos próximos dias irei responder a todas as outras. Se tiverem questões são convidadxs a deixar em comentário. 

Primeira nota: Todas as minhas respostas são com base no meu poliamor e na forma como eu e as pessoas com quem estou gerimos as nossas relações. Existem várias formas de viver o amor e não quero com as minhas respostas invalidar qualquer relação que tenha outras bases. Somos pessoas antes de sermos pessoas poliamorosas e é importante ter isso em conta, sempre. 

Segunda nota: A minha decisão de responder a perguntas sobre a minha experiência no poliamor vem de um activismo pela voz da Mulher. É um acto politico envolver o feminismo na minha liberdade nas relações; na minha liberdade sexual; na liberdade das pessoas com quem estou. Não somos todxs cis. Não somos todxs gays. Não somos todxs sexuais. Somos minorias mas temos voz. Existimos enquanto família mesmo que seja dentro da nossa casa. Comparativamente a um homem – que é lido como "garanhão" por ter várias pessoas – uma Mulher é lida como impura, vadia, submissa – nunca como sendo uma pessoa que tomou uma decisão e que essa decisão a deixa feliz. Não como um ser humano que pode escolher. Que pode amar. Que pode fazer sexo. A minha decisão de responder a perguntas sobre a minha experiência no poliamor vem das minhas lutas: sim sou Mulher e sim amo mais que uma pessoa e tenho relações com quem me apetecer – tenho coisas a dizer e a minha experiência não é a de todxs mas igualmente válida 

1 - Como reagir aos comentários que nos insultam enquanto pessoas poliamorosas? 
Parece-me óbvio que não posso responder por todas as pessoas que passam por esta situação. Eu própria já tive reações completamente distintas.  
Quando comecei a falar sobre poliamor e iniciei a minha primeira relação poliamorosa, nem eu sabia responder a muitas das perguntas que me faziam. A culpa e o peso que me colocavam nos ombros - em forma de insulto ou de falsa felicidade - parecia-me justa. Também era novo para mim por mais que me fizesse sentido. Não me sabia defender; não conhecer muitas pessoas poliamorosas na altura também não ajudava. Sentia-me uma criança imatura que tenta fugir às normas e fazerem-me sentir assim não foi correcto. Ninguém tem o direito de nos magoar. Tentava desculpar-me. Passava mais tempo a falar de como não é a sex thing do que a falar da minha felicidade. Ouvi coisas horríveis e pior do que as ouvir sobre mim foi saber que as duas pessoas com quem namorava na altura ouviam ainda pior. Doeu muito. No entanto cheguei a uma altura em que os insultos eram sempre os mesmos - já não magoavam. Conseguia imaginar tudo o que ia sair da boca das pessoas e se não fosse verbalizado, era projectado através do olhar. Não eram só os insultos verbais, era olharem para mim como se eu estivesse suja. Como se fosse impura. Absorvi todas essas coisas e criei um escudo. O escudo do super-amor. Um super-poly-escudo. A forma que eu arranjei para me defender foi a de me mostrar completamente preparada para qualquer tentativa de ataque. Antecipo-me a dizer as coisas e faço-o de forma sarcástica. Antes de me chamarem de qualquer coisa, introduzo-me eu dessa forma. "Olá sou poliamorosa e antes que digas eu sei que isso me dá a possibilidade de fazer sexo todos os dias com imensas pessoas. E sim, temos um quarto só para orgias." Okay, não digo por estas palavras mas digo como se fossem estas as palavras. Deixei de ter forças para lutar contra pessoas que me desrespeitam desde inicio. Se me insultam e se me atacam eu tento transformar isso em duas gargalhadas, uma resposta ainda mais ignorante e se tiver que chorar, choro em casa, abraçada a quem amo. Juntxs somos um super-poly-escudo porque sabemos que não fazemos nada de errado se não vivermos as nossas vidas com muito amor. No fim do dia é isso que me dá força, saber que quem me magoa lá fora não consegue alterar a forma bonita como aprendi a construir o amor dentro de mim. 

2 - Como falar de poliamor sem as pessoas perderem a cabeça?  
Aprendi um truque ao assumir-me como lésbica. Basicamente não faço introduções a temáticas. Não existe uma preparação: tenho uma coisa para te dizer - não. Falo sempre das coisas de forma natural como se não entendesse que o assunto é tabu. Enquanto me falam da namorada ou do namorado eu conto histórias também: a minha namorada é fã de unicórnios mas a minha outra namorada diz que está farta deles. Aqui acho que as pessoas ficam mais chocadas por existir alguém no mundo farto de unicórnios em vez de eu ter duas ou três ou quatro namoradas. - A tua outra namorada? - Sim, não é incrível existir alguém que não goste de unicórnios? - Então mas namoras com mais que uma pessoa? - A questão não é essa, o que me devias perguntar é o que é que vi nela, já que os unicórnios não são opção. Eventualmente tenho que explicar. - Ah sim, não sabias? Tenho duas relações, temos que ir sair juntxs, vais gostar muito delas. Geralmente resulta demonstrar naturalidade, as pessoas não costumam ter grandes reações além daquela cara de que estão a ver o Cavaco a ser eleito mais uma vez. Essa cara assusta e é simultaneamente cómica, a cara, não o Cavaco. Ainda assim demorou a que eu conseguisse falar do meu poliamor de forma tão descontraída, tinha muitos medos que ultrapassei com o tempo. 

3 - Como é que pessoas não-poli devem conversar com pessoas poli sem dizer asneiras e sem cair na mononormatividade? 
Como em todas as conversas o mais importante é respeitar. É ser humilde. Um dos momentos mais horríveis que passei foi num grupo feminista - "feminista" - em que atacaram as pessoas poliamorosas. As discussões online têm consequências e ter mulheres brancas, cishéteros e mono a tentarem dar uma lição sobre relações da forma mais bruta que existe - ao atacar pessoas lésbicas e poliamorosas - deu-me entrada imediata para uma crise de ansiedade enorme. Nós estamos sempre à espera de ouvir essas coisas lá fora num mundo que não é activista. Quando acontece dentro de um suposto safe space, ainda dói mais. Isso é a prova de quem o ser humano é imperfeito independentemente do que defende. Portanto o que eu digo é: respeitar e ser humilde. Não ter medo de colocar questões desde que essas não magoem ninguém. Cair em mononormatividade faz parte, estamos formatadxs. O importante é tomarmos essa consciência e pedirmos desculpa se tivermos que pedir. A pior forma da monormatividade chegar a mim é através do apagamento de relações. Perguntarem-me pela pessoa A exclusivamente; ajudarem-me a resolver problemas com a pessoa A exclusivamente; anularem outras pessoas com quem tenho uma relação mesmo tendo conhecimento que elas existem. As palavras magoam - em qualquer conversa devemos pensar na forma como vamos dizer as coisas para tentarmos ao máximo respeitar as experiências que não são nossas sem cairmos no desrespeito e muitas vezes na intolerância e ignorância. 

4 - Como ser assumidamente poli com novxs parceirxs sem parecer que estamos logo a preencher formulários? 
Existem coisas que são nossas, que fazem parte da nossa vida de forma constante. O poliamor é certamente uma dessas coisas. Se eu iniciar uma relação, me levarem a jantar e pedirem leitão, eu vou ter que recusar e vou ter que dizer: sou vegetariana. Em qualquer tipo de relação nós temos que dar a conhecer a outra pessoa o que somos e o que queremos, para que não seja injusto para nós e para que não seja injusto para ela. Se eu não disser inicialmente que sou poliamorosa e der inicio a algo que posso querer desenvolver, quando é que vou dize, sendo que condiciona o futuro de ambxs? Existe obviamente o medo de afastar as pessoas; de as assustar - existe o medo de parecer que estamos a querer assinar contractos de não-exclusividade mas o que estamos a fazer é a ser honestxs connosco e com x outrx. É uma decisão da outra pessoa aceitar e ficar como é também uma decisão da pessoa não aceitar e não ficar mas não é isso que o poliamor tenta fazer? Sermos honestxs com todas as pessoas com quem nos envolvemos? Darmos a possibilidade de escolha? Então a honestidade deve começar de ínicio, até porque nos poupa um pontapé mais tarde quando percebemos que afinal a pessoa queria uma relação super monogâmica e exclusiva. O ideal é explicar que faz parte da nossa vida, que é uma decisão que já existia antes de existirem novas pessoas e que nos faz feliz. Não adianta adiar um assunto que terá certamente que existir.  

5 - Como lidar com paixões por pessoas mono? 
Bem - isso vai sempre depender de se mesmo a pessoa sendo mono, se mostra disponível para aprender e tentar desconstruir a monogamia. Na minha experiência, todas as pessoas com quem iniciei relações eram mono até existir a possibilidade de trabalhar a relação poli. Uma pessoa pode continuar a ser mono e estar numa relação poliamorosa - nem todas as pessoas em relações poliamorosas são de facto poliamorosas. Vai ser uma desconstrução constante. A verdade é que a monogamia é nos incutida como a única opção. Existe uma grande possibilidade de depois de conhecermos outras formas de viver o amor, as querermos introduzir na nossa vida. Se nos apaixonarmos por uma pessoa mono e decidirmos que faz sentido viver essa relação de forma monogâmica também é válido. Tudo o que fazemos desde que seja consensual para todxs xs envolvidxs é válido. O importante é não omitir o que somos e o que vivemos. Se a pessoa não quiser uma relação poliamorosa e nós não quisermos abdicar do poliamor então um abraço apertado para todxs - porque certamente será uma experiência menos feliz que nos afecta. 

6 - Onde arranjar paciência para explicar "aquelas pessoas" que poliamor não é promiscuidade, não é apanhar sida, não é poligamia nem é traição:  
Se souberem onde se arranja deixem-me nos comentários. Agora a sério, não temos que arranjar paciência. Não é nossa obrigação educar ninguém se não quisermos. Existem alturas em que a paciência surge e muito provavelmente ela vem da forma como nos colocam as perguntas. Alguém que parte do principio que poliamor é andar a apanhar sida geralmente não merece o meu tempo. Quando sinto que merece ser respondido e que devo tentar elucidar alguém, respiro fundo e penso que não o estou a fazer só por mim e só pelo meu poliamor mas também pela minha homossexualidade, pela minha liberdade, por ser Mulher e por todas as outras frentes que precisam de ser enfrentadas. A minha paciência vem da minha vontade de me afirmar. De ter voz. Geralmente preciso de tempo para responder a essas provocações de forma calma, preciso de respirar fundo e pensar que tenho a sorte de ter acesso a informação. Então utilizo o meu activismo, o meu amor que se multiplica e os meus conhecimentos para mandar abaixo todo o slutshaming e toda a polifobia.  
    
7 - Como é que se dá inicio a uma nova relação? Cada pessoa é livre de iniciar as relações que entender ou é algo que tem que ser discutido porque se está a trazer uma pessoa nova para a família? 
Tudo tem que ser informado e comunicado nas minhas relações. A minha politica é tentar que as pessoas com quem estou conheçam a pessoa por quem me interesso. É importante que se crie alguma ligação - traz a todxs a sensação de proximidade e confiança. Se alguém com quem estou quiser dar inicio a uma nova relação, é de extrema importância para mim sentir que faço parte dessa decisão. No fundo todxs nós temos uma rotina e temos uma base já construída. Assusta a possibilidade de alguém aparecer e mudar tudo isso. Quando não se conhece a outra pessoa criam-se mil e uma coisas na nossa cabeça que acabam por ser derrubadas com o convívio. Partilhar interesses. Falar sobre a série favorita que têm em comum ou jogarem playstation uma noite inteira. Se não existir qualquer química entre todas as pessoas envolvidas então é necessário falar. Eu partilhando casa com quem namoro e essa pessoa trazendo alguém com quem me sinto extremamente desconfortável é uma situação que não quero viver. Cabe a todas as partes serem honestas e discutirem a solução, porque ninguém tem que estar a viver uma situação que não traz felicidade.  
Acrescento que nem sempre as pessoas estão capazes de gerir o começo de outra relação dx parceirx. É importante dizermos o que sentimentos genuinamente. Um: não sinto que a nossa relação de momento esteja bem, não me sinto confortável em começares uma outra relação sem que consigamos estabilizar e dedicar tempo às coisas entre nós. Isto é válido - tudo o que todxs sentem é válido, deve ser ouvido e deve ser procurada a melhor solução para todas as partes. No fundo o poliamor não é um concurso ao maior número de parceirxs mas sim amar várias pessoas - e amar implica ouvir e respeitar os sentimentos dx outrx 

8 - Como sair do armário para a família?  
São poucas as pessoas na minha família que sabem que sou poliamorosa - no entanto também não escondo. Eu sei como é que funciona na minha família: há coisas que não se querem ouvir, então eu guardo para mim sem permitir que isso me prive muito. Não posso responder a essa pergunta pegando no meu exemplo enquanto pessoa poli mas presumo que pegando no meu exemplo como pessoa lésbica e activista consigo dizer algumas coisas. Sair do armário é uma decisão muito pessoal e ninguém deve ser forçado a tal. Dentro das relações poliamorosas existem pessoas que pedem que para a família se comportem enquanto casal monogâmico. Devemos sempre respeitar esses pedidos e tentarmos apoiar ao máximo a outra pessoa quando esta decidir fazer um comming out. Não existe melhor ou pior forma de dizermos: sou poliamorosa. Depende da nossa situação financeira, da nossa independência, da nossa família - depende da nossa força emocional também. O processo de afirmação é importante - mesmo quando ouvimos coisas horríveis, sai um peso de cima dos nossos ombros. Quando a minha mãe me perguntou: mas tu namoras com X ou com X e com Y? Eu ri-me e disse: ah, era engraçado. Não houve coragem e arrependo-me hoje em dia pois tinha sido a oportunidade perfeita. Agora acho isso porque tenho mais força; mais independência. Não posso dar nenhuma sugestão sobre o assunto se não: os armários são todos difíceis. Gays, lésbicos, bissexuais, transpoliamorosos etc.. mas existem pessoas que estão aqui incondicionalmente. A nossa família é nos tida como o nosso maior amor incondicional mas a nossa mãe e o nosso pai são pessoas - perfeitas ou imperfeitas, são pessoas que não têm que representar esse amor. No meu caso representam e ainda assim não respeitam as minhas decisões na totalidade. É uma decisão minha pegar na minha vida e vivê-la como eu quero. Se tu, que me estás a ler, não tens coragem para sair do teu armário - não és fracx. És uma Pessoa. Tens o mesmo mérito e o mesmo valor. Quando sentires que o deves fazer, se não tiveres apoio, lembra-te que existem milhares de pessoas no Mundo que te vão ouvir e dizer: não és uma merda.  

9 - Em relações poliamorosas há aqueles momentos de "eu pensava que já te tinha dito e não disse"?  
Há, claro que sim. O que não quer dizer que não tenha consequências. Se for uma coisa simples como o facto de não contar aos meus dois amores que lhes manchei a roupa toda porque a pus no programa errado, é okay (bem, depende da roupa). Se for uma coisa como eu não ir dormir a casa porque vou dormir a casa de alguém de quem elxs nunca ouviram falar e nem sequer os aviso enquanto estão à minha espera e depois digo: ah, pensei que sim! Não é okay. O poliamor não é uma carta branca para tudo, as pessoas têm sentimentos e merecem ser informadas. Avisadas. É muito importante termos atenção às coisas que dizemos e às que faltam dizer. Omissão seja ela propositada ou não, pode desencadear bolas de neve de inseguranças que não têm fim, às vezes andar com uma lista de coisas que se tem que avisar no telemóvel resolve muitos mal entendidos. 

10 - Considerando que numa relação há amor, sendo poli é possível amar duas ou mais pessoas ao mesmo tempo? 
Quatro e cinco e seis. É um trabalho incrível de multiplicar o amor. Sim, é possível amar mais do que uma pessoa. No fundo a ideia de amarmos apenas uma pessoa é nos ensinada socialmente. A verdade é que amarmos hoje alguém, numa perspectiva monogâmica, acabarmos a relação, darmos inicio a uma outra relação monogâmica e amarmos essa pessoa - significa que o amor não foi exclusivo a uma, simplesmente se assumiu um compromisso durante o tempo de relacionamento. O poliamor permite que ames alguém mas que não te prives de amares outra pessoa. Existem pessoas que aparecem na nossa vida um ano, dois anos ou vinte anos depois de já estares com alguém - essa pessoa não tem culpa de ter aparecido na tua vida nessa altura nem tu tens culpa de não teres conhecido a pessoa antes - no entanto, amas a pessoa com quem estás também, incondicionalmente. Tudo isto são casos reais. O amor não se divide - é infinito. Amamos pessoas na família, amamos amigxs, amamos parceirxs mas amamos. Não se vende o amor ao peso, por isso devemos aproveitar o que ainda temos de gratuito: como amar. 

coisas bonitas de se ouvir no vídeo abaixo:



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