sexta-feira, 3 de junho de 2016

Machismo - uma faca no peito

Vinha no avião a caminho de Londres e encostei a cabeça para dormir. Até ali tinha estado a enganar-me. Fingia que vinha carregada de uma energia super positiva. Fingia que o nosso encontro na Praça da Figueira tinha sido algo de bom - de bonito. E foi. Mas não foi. Não foi. Vinha no avião a caminho de Londres e encostei a cabeça para dormir. Caiu-me a ficha. Caíram-me as lágrimas. Vim a correr escrever isto - gritar isto. Ali, sozinha, não conseguia falar com ninguém. Não conseguia abordar alguém e pedir para chorar com a Pessoa. Não conseguia dizer que a culpa do meu choro era do machismo. Não conseguia fazer o que fiz naquele dia - falar alto.  

Até ali tinha estado a enganar-me. Fingia que vinha carregada de força. Fingia que o nosso encontro na Praça da Figueira me tinha recarregado as baterias. Mas não. Esgotaram-se. Não existem baterias que aguentem o discurso de vítimas, de sobreviventes. Não existe peito que não exploda. Coração que não chore. Queria lembrar-me do dia pela sua magia na união; mas não consigo. O meu corpo tremia cada vez que tentava falar. Todas as pessoas que falaram tinham o corpo em sintonia com o coração: revoltado. O dia ficou registado pelos testemunhos. Pela semelhança nas experiências de vida. O dia ficou registado pela certeza de que o machismo nos quer matar e nem sempre é de uma forma rápida - é de várias formas lentas. O machismo é uma faca no peito que roda como os ponteiros de um relógio. Nós não podemos viver, vamos sobrevivendo. A cada comentário a faca roda. A cada toque a faca roda. A cada dia o corpo é agredido, ignorado, desprezado, humilhado e a cada dia caminhamos na direção do machismo que mata - a faca roda. De cada vez que Mulheres são apedrejadas por terem sido violadas ou de cada vez que um homem fala mais alto para nos silenciar, a faca roda. De cada vez que é por sermos lésbicas, magras, gordas ou feias. De cada vez que a vizinha grita, de cada vez que a amiga desabafa, de cada vez que nos mandam mudar de roupa, de cada vez que eu me lembro das penetrações violentas no meu corpo de criança - A FACA RODA. 


(se alguém conhecer x autorx da foto que me deixe em comentário por favor)

A minha mãe estava ali, revoltada no silêncio dela. A minha mãe estava ali porque lhe arrancaram pedaços da filha. Porque lhe arrancaram pedaços dela. Como ela, estavam ali outras mães. Irmãs. Amigas. Como ela, como eu - estavam ali outras Mulheres. Outras crianças. Outras vítimas.  

O dia não me trouxe uma energia positiva - não me trouxe as baterias recarregadas - mas trouxe outra coisa: trouxe a memória do dia em que se falou e desabafou tudo o que a sociedade nos manda calar. Ninguém apontou o dedo - só abraços. Fica o eco do choro. Fica a tristeza imensa. Fica o amor incondicional pela luta. Fica sobretudo a promessa de nunca permitir discursos em que culpabilizem as vítimas, venham eles de onde vierem - machista não passará; discursos disfarçados de boas intenções cheios de "mas" - cheios de "e se" - não passarão.  

Todos os dias tenho que me lembrar de que para chegar onde os homens chegam, tenho que lutar mais. Gritar mais. Tenho que chorar mais. Tenho que ser violada em pensamento no meio da rua, do autocarro, do supermercado ou na casa de uns amigos de família - violam-nos em pensamento e depois manifestam orgulhosos em forma de olhares, comentários e convites. Só nós sabemos - mas também sabemos que ninguém nos vai calar, se tivermos que falar mais alto falamos. Para todas as pessoas que sofrem por sermos vítimas da sociedade machista imaginem esta faca que roda, no peito, e de olhos fechados imaginem que a estão a arrancar de vocês e a envia-la para uma fogueira simbólica - de proteção. Eu fiz o mesmo. Chega de sermos agredidas! A revolução está em nós - mexeram com uma, mexeram com todas.

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