sexta-feira, 18 de dezembro de 2015

Cis tears - trans love.

(Este texto só foi publicado após a leitura dos meus amores 
e a aprovação e consentimento de ambxs.)



Sei que é um assunto perigoso, difícil e necessário. Por isso resolvi aceitar o perigo, a dificuldade do que senti ser necessário. Sou cis - com tudo o que isso implica, todos os privilégios óbvios que tenho. Não, não existe cisfobia. Sim, sou privilegiada neste sentido. Não sei, não faço ideia o que é ser se não cis. Não sei, não faço ideia da dor. O medo. A tristeza. A revolta. Até a felicidade e o orgulho - se existir. Não sei. Não faço ideia. Sei o que vejo - as noticias. As mortes. Os números. A falta de apoio. Sei, do que vejo. Não do que sinto. 

O meu mais recente amor disse-me que achava que era trans. Não - ele não disse que achava que era trans. Ele disse que queria ter barba. Que queria fazer algumas cirurgias. Mas que não sabia bem o que era isso. Vimos documentários. Canais no youtube. Lemos artigos. Dei-lhe a informação que tinha de grupos activistas e de pessoas trans. Explorou questões não normativas. Eu, ele e o meu outro amor. Quando a página maravilhosa: Leyla Lagosta publicou este post - ele disse que se revia muito em algumas coisas. Falou comigo de pronomes. De mudar de nome. Fomos dormir. Quando acordei ele estava sentado no chão da sala (vamos todxs entender que ele nunca se levanta primeiro que eu) queria ver uma lista de nomes. Escolher um nome. Mal consegui dormir ansioso por ir escolher um nome. Tínhamos encomendado pizza. Usamos a parte de dentro da caixa - ele fez uma lista com os nomes que gostava. Depois chamou todas as pessoas da casa, uma a uma, para votarem no nome que mais gostavam. Decidiu o nome. Anunciou a todxs nós. Anunciou que o pronome tinha mudado também. Que era nossa obrigação o respeitar. Não sabia como explicar. Podes explicar tu? Expliquei que se era uma decisão dele então era suficiente para as pessoas respeitarem. O meu namorado é trans. Li artigos de compranheirxs de pessoas trans. O que devemos fazer. Como apoiar. Li artigos de pessoas trans e do que esperam dxs companheirxs. Tentei absorver toda a informação. Tentei ser um amor cis que sabe amar e respeitar - mas nunca entender.  


O que sei é que ao fim de dois anos de relação o meu outro amor andava triste. Foi na mesma altura. Quando víamos e liamos coisas em conjunto. Ia chorar para o quarto. O que se passa? - Acho que percebi que sou sem abrigo do meu corpo. (Nunca me vou esquecer desta expressão -) Não me sinto um homem mas também não me sinto uma mulher. Não quero nenhum pronome. Não me sinto eu em nenhum. Devido ao circulo de pessoas com quem me dou tenho conhecimento que o género vai além do binarismo. Que as possibilidades não normativas são mil. Podemos ir ler na net, podemos ir ver se existe um nome para o que sentes. A minha confiança com elxs permitia também fazer algumas piadas, tentar mostrar que era okay e que podíamos rir e sorrir. Páginas no facebook. Grupos. Definições. Sou uma pessoa não binária. Abraçou-me. Suspirou. Depois começou a rir. Estava mesmo preocupadxNo meio das minhas piadas e da minha convicção de que tudo ia ficar bem existia o medo que cresce da ignorância. Eu não sei. Não consigo saber. Mas amo esta pessoa - quero conseguir dar mais do que um não sei. Não - não devemos colocar palavras em experiências que não são nossas. Mas sempre que falo do facto de ter sido uma rape victim gostava de mais que silêncios. Silêncios que gritam; que queres que diga? Não sei o que isso é. Eu sei que não sabem mas às vezes sabia bem que as pessoas conseguissem fazer ou dizer mais do que um consolo - lamento. Eu sei que lamentas. Também eu lamento. Neste caso, com este meu amor queria saber dizer mais do que disse. Elx tinha percebido que o meu outro amor se encaixava numa das caixas que lhe eram oferecidas. Que se sentia feliz com ela. Elx não - as caixas não faziam sentido. As ferramentas de estar inserida num meio activista foram imprescindíveis. Acho que foi essa a forma que arranjei de conseguir ajudar, de lhe dar a mão. Chegámos à sala. Elx tinha os olhos vermelhos e molhados ainda. Tenho uma coisa para te contar - disse ao meu outro amor - descobri que sou uma pessoa não binária. - E porque é que estás triste por causa disso?  


Os meus dois amores não são cis. Os meus dois amores compreendem-se - eu respeito. Levantei-me. Fomos fazer um bolo. Pasta com cores da bandeira trans. Escrevi coisas no bolo. Que era okay - que xs amava. Elxs fazem piadas agora quando discordo de alguma coisa (nem que seja do jantar) - dizem que é cis tears. Rimos. A transfobia não me afecta directamente mas afecta as pessoas que amo. Com quem partilho casa. Com quem janto. Com quem faço planos. Posso não saber o que é sofrer na pele mas sei o que é as pessoas que amamos sofrerem. Desde as burocracias. Aos pequenos detalhes. E no trabalho? O que é que eu digo? E a famíliaOs detalhes que magoam. Ontem estava a lavar a loiça e elxs estavam a jogar Quem é Quem? E diziam: agora não podemos perguntar se é Homem ou Mulher ou então vamos ter que achar que são todxs cis. Depois riam. Eu sorria. Vou sorrindo dentro de mim por saber que pelo menos aqui elxs são quem querem ser. Lá fora estarei atrás delxs se algo xs magoar. Para xs abraçar. Para tentar dizer coisas além de lamento. 

Não estou em posição de falar como se a experiência fosse minha mas sinto-me não no direito mas no dever de lutar ao lado delxs. Os meus amores são trans - e eu não sei, não faço ideia do que é viver isso. Só sei que xs amo. Que isso me chega para xs respeitar. Sempre. 

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